sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

Taxinomia toponímica

As possibilidades recentemente abertas ao trabalho científico, pelo desenvolvimento da informática e pela crescente tendência para a interdisciplinaridade, implicam novas respostas, capazes de potenciar as recém-chegadas ferramentas. Foram estas, por excelência, as razões que me forçaram a reflectir sobre os problemas da classificação e tipologia dos topónimos, a partir dos numerosos estudos já publicados, desde os trabalhos pioneiros de José Leite de Vasconcelos e Alberto Sampaio, passando, entre outros, por Joaquim da Silveira, José Joaquim Nunes, Joseph Piel, Pedro Cunha Serra, Dieter Kremer ou Almeida Fernandes, e terminando no vastíssimo manancial de obras versando a onomástica ou a toponomástica em particular, publicadas um pouco por toda a Europa, cujo balanço, no que respeita à àrea românica, tem vindo a ser feito, desde a década de oitenta, no Lexikon der Romanistischen Linguistik (LRL).
O problema da classificação, com destaque para os conteúdos toponímicos, foi há muito considerado prioritário, embora muito pouco tenha sido feito, tanto em Portugal como além-fronteiras, onde os diferentes autores vão introduzindo neologismos, sem que, como afirma Dieter Kremer (Portugiesisch: Toponomastik, in LRL, vol. 6/2, 1994, p. 534), haja um consenso universal. Apesar dos desencontros, que prejudicam o desenvolvimento destes estudos, encontramos um ponto de união entre os diferentes contributos avulsos, já que todos partem de construções baseadas no grego clássico.
A Academia das Ciências de Lisboa é a instituição a que, por lei, cabe a resolução dos problemas relacionados com a língua portuguesa, mas, por razões que desconhecemos, que poderão relacionar-se com aspectos orçamentais, muito pouco tem sido feito nas últimas décadas. Destaco o seu Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, publicado em 1940, com cerca de cento e quarenta mil entradas de vocabulário comum e dezassete mil de nomes próprios, onde se avançou alguma coisa na classificação do vocabulário onomástico (p. XXI-XXIV).
No que respeita à toponomástica, o maior esforço de classificação continua a dever-se a Almeida Fernandes, autor da excelente entrada, s.v. "Toponímia", da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (vol. 32: 70-84), trabalho forçosamente datado, que merecia ter sido revisto na recente actualização desta obra.
Com base em todos estes contributos, e respeitando as designações já consagradas pela Academia na obra acima referida, tentei, a partir do léxico do grego clássico, estabelecer um sistema taxinómico, capaz de responder à função e conteúdo dos diferentes topónimos, com vista a facilitar o seu posterior tratamento. Esta proposta pretende ser uma primeira aproximação a uma imprescindível sistematização toponomástica, esperando os contributos indispensáveis ao seu enriquecimento, com vista à posterior aceitação pelo órgão legitimador.
Se este processo for levado a bom termo, será possível, no futuro, e perante estudos da mesma natureza, referidos a diferentes áreas e/ou regiões, avançar para o respectivo cruzamento, partindo de um sistema comum, capaz de fornecer as sínteses indispensáveis, geradoras de novos trabalhos e estudos, mas também de problemáticas sustentadas que, no seu conjunto, contribuiriam para um melhor conhecimento do nosso passado, fornecendo novos materiais a linguistas, historiadores, arqueólogos, sociólogos, antropólogos e geógrafos, mas também a biólogos e geólogos.
Dada a sua consagração, toponímia, topónimo e o adjectivo toponímico deveriam continuar a ser usados, quando nos referimos aos nomes dos lugares em geral, mas, em termos classificativos de precisão, seria importante acrescentar àqueles os termos microtoponímia, microtopónimo e microtoponímico.
Nesta segunda aplicação, o primeiro grupo ligar-se-ia à chamada "toponímia maior", que incluiria os nomes das localidades e regiões, enquanto o segundo, ligado à "toponímia menor", se aplicaria aos nomes de sítios, fossem eles campos, herdades, arruamentos, fontes, vales, montes, ribeiros, etc..
Por detrás desta classificação estaria o homem, o agente nomenclador, que entraria na "toponímia maior" através da sua função gregária, expressa nos povoados, sejam eles aldeias, vilas ou cidades, a partir dos quais a natureza é transformada e nomeada.
A extrema riqueza e variedade de conteúdos, da toponímia em geral, exige que avancemos para a sua sistematização, fixando uma terminologia suficientemente expedita e atenta ao pormenor, através da qual possamos organizar a informação para posterior tratamento.
Assim, respeitando, como disse, a terminologia já fixada pela Academia, que só interfere, e raramente, nas subdivisões da minha sistematização, organizei uma taxinomia toponímica que, como regra geral, antepõe e aglutina ao substantivo toponímia um elemento grego, com a dimensão suficiente para uma leitura do respectivo significado.
Esta taxinomia, que a seguir se enuncia, desenvolve-se em 17 classes (grau 1), algumas das quais com subclasses (grau 2) que, em poucos casos, ainda se subdividem (grau 3), somando, no seu conjunto, 36 categorias:

1. Agrotopónimo < agros, "campo": actividades agro-pecuárias (Agra, Arrota, Campo, Campelo, Ribafeita, Vinhais, etc.);
2. Antropotopónimo < anthropos, "homem": toponímia a partir dos nomes próprios, apelidos e alcunhas das pessoas, abarcando a antroponímia e a prosonímia (Academia, 1940: XXII);
3. Arqueotopónimo < arkhaios, "antigo": qualquer topónimo que aponte para vestígios do passado, mais ou menos recente, assumindo o carácter de fonte arqueológica, no sentido mais amplo e actual desta ciência. Por esta razão, a classificação nesta divisão não exclui a inclusão numa das outras;
4. Axiotopónimo < axía, "mérito, dignidade, honra": a partir de "palavras que constituam formas corteses de tratamento ou expressões de reverência" (Academia, 1940: XXIV) ou cargos elevados na estrutura das instituições civis e religiosas (El-Rei, Rainha, Alcaide, etc.);
5. Biotopónimo < bios, "vida": vida animal e vegetal, podendo especificar-se nas subdivisões a seguir enunciadas:
5.1. Fitotopónimo < phytón, "planta": plantas (Carregal, Taboeira, etc.);
5.1.1. Dendrotopónimo < déndron, "árvore": árvores (Carvalho, Castanheiro, Freixo, Loureiro, etc.);
5.2. Zootopónimo < zoon, "animal": animais (Mataduços, etc.);
5.2.1. Entomotopónimo < éntomon, "insecto": insectos (Ralos, Raralha, etc.);
5.2.2. Ictiotopónimo < ikhthýs, "peixe": peixes (Enguia, Parrachil, etc.);
5.2.3. Ornitopónimo < órnis, "ave": aves (Cantadeira, Codornizes, Cotovia, Falcoeiras, Gaivota, etc.);
6. Cromotopónimo < khroma, "cor": cores (Alva, Viriato, etc.);
7. Emporotopónimo < empória, "comércio": actividades comerciais, mercados (Feira, Venda, etc.);
8. Etnotopónimo < éthnos, "raça, nação, povo": "nomes de povos, de tribos, de castas [...], de comunidades políticas ou religiosas que possam ser entendidas num sentido étnico" (Academia, 1940: XXIII) (Galegos, Coimbrões, etc.);
9. Geotopónimo < , "terra": acidentes geográficos e respectivos nomes (Cabedelo, Ilha, Serra, Monte, Vale, Vouga, Tejo, Marão, etc.);
9.1. Hidrotopónimo < hýdor, "água": nascentes, fontes, linhas e toalhas de água, podendo especificar-se nas subdivisões já consagradas (Fonte Nova, Fonte da Pega, Lagoa, Arrujo, Ribeiro, etc.):
9.1.1. Limnotopónimo < límne, "pântano": estudo onomástico dos lagos e de outros acidentes lacustres (Ria de Aveiro, Pateira de Fermentelos, etc.);
9.1.2. Potamotopónimo < potamós, "rio": estudo onomástico dos rios (Vouga, Águeda, Cértima, etc.);
9.2. Litotopónimo < líthos, "pedra": rochedos, aspectos geológicos (Barreiro, Areal, Pedra da Moura);
9.3. Orotopónimo < óros, "monte, montanha": relevo e formas de terreno (Outeiro, Vale, etc.);
10. Heortopónimo < heorté, "festa, festividades populares" (Academia, 1940: XXIII);
11. Hierotopónimo < hierós, "sagrado": sagrado, religião, templos, capelas (ex. Ermida, Mosteiro, Igreja, Grijó, etc.) (Academia, 1940: XXIII);
11.1. Hagiotopónimo < hágios, "santo": santos (Nossa Senhora de Fátima, Santa Joana, Santo Amaro, São Tiago, São Roque);
11.2. Mitotopónimo < mýthos, "mito, fábula, nomes relativos à mitologia clássica ou a outra qualquer" (Academia, 1940: XXIII) (Lares, etc.);
11.3. Teotopónimo < theós, "Deus": Deus, religião (Senhor dos Aflitos, Senhor das Barrocas, etc.);
12. Hodotopónimo < hódos, "caminho": caminhos, ruas, praças, pontes, barcas de passagem, vaus, transportes, estações de mudas (Adro, Atalho, Azinhaga, Barca, Calçada, Caminho, Carreira, Carril, etc.);
13. Lexotopónimo < lexis, "maneira de falar, elocução", "estilo", "palavra", "expressão": sequência sintáctica fixa relativa a um topónimo; toponímia predicativa e atributiva, sob a forma aglutinada ou analítica (Vilaverde, Lamamá, Quinta da Velha);
14. Necrotopónimo < nekrón, "cadáver": morte, sepulturas (Arco, Arcozelo, Moimenta, Pias, Anta, Mamoa, etc.);
15. Oicotopónimo < oiquía e oícos, "casa"; katoikídho, "povoar, tornar habitado, colonizar": formas de assentamento humano, núcleos de povoamento e/ou respectivo estatuto jurídico; marcos divisórios de propriedades; edificações e fortificações; abrigos naturais (ex.: Póvoa, Aldeia, Jugueiros, Vilafranca, Vilanova, Montaria, Casal, Paço, Sá, Torre, Vilar, Vila, Vilela, Vilarinho, Quintã, Cividade, Citânia, Prova, etc.; Espiunca, Pala, etc.);
15.1. Aminotopónimo < amina, "defesa", "acção de se defender": fortificações, lugares de vigia (ex.: Castro, Castelo, Torre, Atalaia, etc.);
15.2. Oriotopónimo < órion "limite, fronteira, marco": marcos divisórios de propriedades e lugares (ex.: Marco, Perafita, etc.);
16. Tecnotopónimo < tékhne, "arte manual, habilidade": ofício, habilidade, arte, artesanato. ciência aplicada, indústrias; trabalho, produtos, utensílios (Fráguas, Fábrica, Ferraria, Forno, Lagares, Moinho, Azenha, etc.; Cabaços, Mós, Modivas, Mofreita, etc.);
17. Uranotopónimo < ouranós, "céu"; < ora, "estado atmosférico, divisão do tempo": corpos celestes, estado atmosférico, firmamento, exposição ao sol ou aos ventos (Solposto, Soleira, etc.);
17.1. Anemotopónimo < anemos, "vento": ventos (ex.: Aguião, Vale do Suão, Coimbrão, etc.);
17.2. Astrotopónimo < ástron, "astro": "nomes de estrelas, planetas, constelações, etc." (Academia, 1940: XXIII) (Solposto, Soleira, etc.);
17.3. Cronotopónimo < khrónos, "tempo": "nomes próprios referentes ao calendário de qualquer povo, os nomes de eras históricas e ainda vários nomes designativos de épocas" (Academia, 1940: XXIII), nomes relacionados com estações do ano, etc. (Branha, etc.).

quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

Eirol, Ourol, Ourolo

Em Portugal: EIROL, freguesia do concelho de Aveiro; orago da paróquia: Santa Eulália. Na Galiza: CHAO DE OUROL, lugar da paróquia de Ourol (Santa Maria), concelho de Ourol, província de Lugo; OUROL, lugar da paróquia de Ourol (Santa Maria), concelho de Ourol, província de Lugo; paróquia do concelho de Guntín, da invocação de San Xulián, província de Lugo; paróquia do concelho de Ourol, da invocação de Santa María, província de Lugo; concelho da província de Lugo; OUROL DE ABAIXO, lugar da paróquia de Ourol (San Xulián), concelho de Guntín, província de Lugo. OUROL DE ARRIBA, lugar da paróquia de Ourol (San Xulián), concelho de Guntín, província de Lugo; OUROLO, lugar da paróquia de Taragoña (San Salvador), concelho de Rianxo, província de A Corunha; O RIO DE OUROL, lugar da paróquia de Ourol (Santa Maria), concelho de Ourol, província de Lugo. Em França: AURIOL, burgo industrial, situado a meia distância de Marselha e Saint-Maximin.

O topónimo Eirol, que corresponde à sede de uma das actuais freguesias do concelho de Aveiro, bem como todas as ocorrências detectadas na Galiza, sob a forma Ourol e Ourolo, e ainda um Auriol no sul de França, derivam do antropónimo latino Aurius, através do hipocorístico Auriolus.
Uma villa Aurioli estaria na origem de Eirol, considerando que, para esta freguesia do concelho de Aveiro, estão atestadas as formas Auriol (1166), Ourol (1220, 1328), Oyrol (1282), Eyrol (1282, 1689) e Eiroll (1516, 1527). A primeira destas formas corresponde ao emudecimento e apócope do -i final do latim vulgar, que ocorre depois da líquida -l- (Huber, 1986: 53 e 90). A passagem do ditongo au para ou/oi é um fenómeno normal do português, havendo igualmente exemplos da mudança de ou- para ei-, como é o caso de Eiteiro por Outeiro, Eiroso por Ouroso = Oiroso (Silveira, 1922: 201) e Eirô por Ourô que detectámos no concelho de Aveiro.
As formas toponímicas "Eirol" e Ourol apontam para uma datação que poderá iniciar-se nos séculos V-VI, quando o genitivo, tipicamente hispânico, substitui o sufixo -anus e atravessar todo o período suevo-visigótico até à Reconquista, quando, por volta do século XII, surge a perífrase com a preposição de. Já a forma Ourolo pertencerá a este último período, quando o genitivo deixou de ser usado na linguagem corrente e a forma única, que passa a ser utilizada, baseia-se no acusativo (Ourolum > Ourolu- > Ourolo), como de resto acontece com os nomes comuns. A partir daqui temos, para os topónimos deste tipo, a peréfrase com a preposição de (villa de Ourolo), ou a respectiva forma elíptica (Ourolo).
São de rejeitar as fantasias de Pinho Leal, no seu Portugal Antigo e Moderno, que começa por explicar o topónimo como diminutivo de "eira", para de seguida apresentar o rio "Erool", no Languedoc, numa leitura grosseira do hidrónimo "Herault" (antigo Arauris).
Mas é precisamente esta interpretação errónea, a que tem merecido honras de repetição em vários trabalhos referidos a Águeda, já que o Herault francês desagua no Mediterrâneo, junto da cidade de Agde.
Quanto ao antropónimo de origem latina, donde provém esta toponímia, continua vivo em França, sob as formas "Oriol" e "Auriol", concentrando-se sobretudo no Sul, nos Midi-Pyrénées (principalmente no Tarn e na Haute Garonne) e no Languedoc-Roussillon. Em Portugal o antropónimo Auriol desapareceu, mas ainda era bastante vulgar no século XI, como podemos comprovar no Livro Preto da Sé de Coimbra, onde o encontrámos em documentos de 1032, 1038, 1045, 1078, 1083 e 1098 (e mais haverá).
Embora nos inclinemos para esta interpretação, não queremos deixar de apresentar uma alternativa ao hipocorístico de Aurius, que seria o mesmo Auriolus ter origem no adjectivo latino aureolus, a, um, "da cor do ouro, bonito, encantador", aludindo à beleza do nomeado ou ao loiro do seu cabelo.


Bibliografia
HUBER, Joseph, Gramática do Português Antigo. Lisboa: FCG, 1986, 417 p.
LIVRO PRETO da Sé de Coimbra. Coimbra: Arquivo da Universidade, 1977-1978. 3 vol.
MADAÍL, A. G. da Rocha (org.), Colectânea de Documentos Históricos. I, 959-1516. Aveiro: Câmara Municipal, 1959. XVII, 330 p.
SILVEIRA, Joaquim da, Toponímia portuguesa. In Revista Lusitana. Vol. 24 (1922) p. 200-202.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

RELVA e seus derivados: uma fala lusitana?

RELVA, RELVACHO, RELVADA, RELVADAS, RELVADEIRA, RELVADO, RELVADOS, RELVAGEM, RELVAIS, RELVANCHA, RELVÃO, RELVAS, RELVASÃO, RELVEIRA, RELVEIRINHO, RELVEIRO, RELVINHA, RELVINHAS, RELVINHO, RELVIO, RELVIOS; A RELVA (Galiza)

A carta militar de Portugal continental dá-nos mais de 250 ocorrências para o topónimo "Relva(s)" e seus derivados, incluindo neste total os topónimos simples e as expressões toponímicas. A este número teremos de acrescentar as 18 ocorrências nos arquipélagos da Madeira e dos Açores (9 em cada) e as de Cabo Verde e Galiza (encontrámos uma ocorrência em cada, a nível da toponímia maior). Para além desta toponímia há muitos outros microtopónimos desta família que, por razões óbvias, não constam da carta 1/25.000, mas que, nalguns casos, podem ser encontrados nas cartas 1/10.000 e, em maior profusão, nos livros de registo das matrizes prediais, como é o caso de Relva(s), Relvada(s), Relvados e Relvão no concelho de Aveiro.
"Relva" é ainda hoje um apelativo muito vulgar em Portugal, designando um "conjunto de ervas rasteiras que juncam um terreno", um "lugar coberto por essas ervas", um "relvado" (Houaiss), ou, nos dizeres de outro dicionarista, a "aglomeração de ervas rasteiras e que pertencem quase todas às gramíneas ou poáceas, as quais juncam os prados e os caminhos de pouco trânsito" (J.P.Machado).
Para além da forma simples, no singular ou com a marca do plural, que abrange a grande maioria das ocorrências, constata-se a derivação sufixal com os afixos -acho, -ada(s), -ada + -eira, -ado(s), -agem, -al (no plural -ais), -ão, -z- + -ão, -eira, -eiro, -eiro + -inho, -inho(a), -io(s) e um caso de aglutinação em "Relvancha" (relva ancha "relvado de grande extensão"). Sistematizando um pouco mais, detectamos sufixos diminutivos (-inha, -inho), diminutivos com valor pejorativo (-acho), de noção colectiva (-ada, -agem, -al, -eira, -eiro, -io), de noção colectiva reforçada por dupla sufixação (-ada + -eira), aumentativo com função de quantidade (-ão, num dos casos com o infixo -z-, mal grafado -s-) e de noção colectiva em simultâneo com sentido diminutivo (-eiro + -inho).
O derivado mais de acordo com a norma portuguesa, significando a referida ideia de conjunto, de noção colectiva, será o que utiliza o sufixo -ada. Outro tanto poderíamos afirmar do sufixo -al, se a presença da mesma líquida no radical e no sufixo o não afastasse; não é por acaso que a única ocorrência surge no plural, precisamente para evitar a cacofonia.
O sufixo -ado coloca alguns problemas, já que, com o sentido de "provido ou cheio de", forma adjectivos de substantivos e nunca substantivos de substantivos. Por isso, "Relvados" será a substantivação do particípio passado de "relvar", intransitivo, ou a substantivação do qualificativo de uma expressão toponímica, por supressão do elemento genérico. Quanto a "Relvadeira", sítio da freguesia e concelho de Miranda do Corvo, poderá ter a mesma origem de "Relva da Eira", sítio da freguesia e concelho da Pampilhosa da Serra, embora este último topónimo possa corresponder a "Relva de Ereira", isto é, terreno de heras, se considerarmos a toponímia envolvente (fica encostada a "Selada da Ereira") e a ausência de acidentes geográficos que justifiquem a presença da fala "eira".
Regressando a "Relva", estamos perante uma voz muita antiga que já aparece em documentos do século XIII e, como vimos, em topónimos das ilhas atlânticas, mostrando a importância da criação de gado no surgimento de diferentes tipos de povoados. A quase totalidade destes topónimos manifesta-se entre Douro e Tejo, seguindo-se em importância os distritos de Faro (com prevalência na serra algarvia) e de Vila Real, continuando nos distritos de Portalegre, Évora, Beja, Lisboa e Setúbal, abarcando, grosso modo, a área do antigo assentamento de Lusitanos e Cónios e, a norte do Douro, algumas franjas do Nordeste que apelidamos de vetãs, face à presença de uma considerável iconografia berroa.
Salvo o referido topónimo galego, e uma outra excepção a que nos referiremos de seguida, a voz "relva" não aparece em mais nenhuma zona da Europa, nomeadamente nas áreas românicas, germânicas e célticas, já que não encontrámos quaisquer vestígios do apelativo ou do topónimo, fosse em Asturiano, Leonês, Italiano, Francês ou Romeno, nos falares Pirenaicos, Aquitanos e do Languedoc, nas línguas célticas insulares e da Bretanha, ou nos antigos falares da Península.
Quanto à excepção atrás referida, registada no âmbito do castelhano, a voz "relva" continua ausente da toponímia, mas logramos encontrá-la no Diccionario da Academia; percebe-se a ausência toponímica, se considerarmos o significado atribuído a este vocábulo, "acción y efecto de relvar", enquanto relvar aparece como sinónimo de "levantar el barbecho" e ligado etimologicamente ao latim relevare, origem que o mesmo dicionário também regista para o verbo espanhol relevar. Embora o mesmo étimo possa originar palavras diferentes, o que ocorre com frequência, sempre que o vernáculo adopta formas eruditas e populares, não nos parece correcta a explicação etimológica apresentada para o relvar castelhano. O que pomos em causa é que um verbo de acção, semanticamente muito abrangente, possa passar a significar uma actividade tão específica que, para ser entendida, obrigaria, necessariamente, a uma informação expressa por um sintagma complementar, pelo que, no caso em apreço, por certo a lógica da língua levaria a um verbo barbechar que, aliás, existe em espanhol, com o mesmo significado de relvar.
As características menos conservadoras do castelhano, face ao português, bem como a complexidade e o elevado número de substratos em que assentou, terão relegado a voz relva para segundo plano, substituída por herbaje, "conjunto de hierbas que se crían en los prados y dehesas", acabando por evoluir semanticamente e perdendo o sentido primitivo que, no entanto, lá continua, embora com o "rabo escondido". Com efeito, a expressão "levantar el barbecho" mais não é que proceder à cava de uma terra que irá ficar em pousio, na qual, necessariamente, crescerão as ervas aproveitadas para a alimentação do gado, possibilitando, no afolhamento seguinte, uma melhor produção de "pão". Entretanto, no Português, temos o "barbeito" para contrapor ao castelhano barbecho, mas, para o castelhano barbechar, teremos que ir ao superstrato, que nos fornecerá o verbo "alqueivar", do árabe al-qewê "terra deserta".
Esta sucessão de reflexões e hipóteses permite-nos acreditar que a voz "relva", que encerra em si todos os fonemas presentes no latim herba, teria constituído, no passado, um apelativo presente na língua indo-europeia falada por Lusitanos, Cónios e Vetões, continuando viva na área portuguesa, mas desaparecendo da área principal do habitat dos Vetões (Salamanca e Cáceres), onde a força do castelhano impôs o seu eclipse.
Por último importa deixar uma breve nota sobre as etimologias que encontrámos dicionarizadas para o apelativo português "relva", cujos fundamentos não nos parecem aceitáveis. Pretende-se que "relva" seja um derivado regressivo de "relvar", com este verbo a formar-se do latim re-herbare, "criar erva outra vez", mas o latim *herbare, se existiu e correu no Ocidente peninsular, é logo esquecido no mesmo dicionário, quando se faz derivar o verbo "ervar" de "erva + -ar". Com efeito, o verbo latino que responde ao aparecimento da "erva" não é *herbare, mas sim herbescere, verbo incoativo a concordar com a tecnologia da época, quando a "erva" seria uma dádiva da natureza, quanto muito ajudada por uma cava, mas não o resultado de uma acção humana de semeadura. Isto mesmo pode ser confirmado pelo Vocabulário de Rafael Bluteau (1720, vol. 7), que regista "relva" como "a erva do prado à flor da terra" e o verbo "relvar" com o significado de "ter relva" e usado apenas no adágio "Quem em Maio relva, não tem pão, nem erva".

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Boas vindas!

Grato pelas palavras simpáticas de José Cunha-Oliveira e de Luís Fraga da Silva (via correio electrónico). Pela minha parte, enquanto utilizador, cumpre-me ainda agradecer o conteúdo dos referidos blogues e as páginas que Fraga da Silva dinamiza e com que nos enriquece.
A aposição do copyright não visou o estabelecimento de qualquer limitação à troca de comentários e de correio. Para que não haja interpretações erróneas, já afastei o obstáculo.
No que se refere à blogosfera não sou apenas um estreante, sou também um autodidacta desconhecedor de quase tudo, com muitas dificuldades em postar os materiais com o mínimo de decência. Daí não ter avançado, para já, com comentários em linha. Espero fazê-lo no futuro, quando tiver a casa mais arrumada. De momento está aberta a via do correio electrónico, a que tentarei sempre responder com o máximo de brevidade.
Agradeço também os comentários de Jo Lorib e de Nóbrega.
Estranha o jovem ancião (eu tenho mais dez) parte da epígrafe do meu blogue. Aceito a estranheza, como estranhei a pergunta de várias pessoas, incluindo alguns licenciados: "o que é isso da toponímia?"

sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

Alvar, Alvares, Alvariça

ALVAR: lugar da freguesia de Pedralva, concelho de Braga; lugar da freguesia de Padreiro (Salvador), concelho de Arcos de Valdevez; ALVARES: freguesia do concelho de Góis; ALVARIÇA: microtopónimo da freguesia de Cacia, concelho de Aveiro, na margem do Vouga; lugar da freguesia de Argela, concelho de Caminha, entre ribeiros e perto do rio Coura; lugar da freguesia de Espiunca, concelho de Arouca, junto de um ribeiro; AGRA DE ALVAR: lugar da freguesia de Joane, concelho de Vila Nova de Famalicão; ALBAR: vários na Galiza; ALBARIZA: vários na Galiza; PRADOALBAR: lugar e paróquia na Galiza, concelho de Vilariño de Conso.

A raiz indo-europeia *albh- "claro, branco", que está por detrás de alguns hidrónimos europeus, como sejam os rios Alba e Elba, está presente no latim, onde deu origem, por exemplo, ao adjectivo albus, a, um "branco" e ao substantivo albu- "cor branca, brancura, alvura".
"Prado Alvar", documentado em 959, numa das confrontações das propriedades possuídas em Aveiro (Alavario) pela condessa Mumadona Dias, poderia apontar para uma significação desse tipo, se "alvar" fosse adjectivo com o mesmo significado de "alvo". Mas esta hipótese tropeça com a presença do sufixo -ar que, em português, não forma adjectivos de adjectivos, mas sim adjectivos (familiar, escolar) ou substantivos (vilar) de substantivos (família, escola, vila). As excepções são formas eruditas pós-renascentistas ou, como parece ser o caso do adjectivo "alvar", documentado a partir do início do século XVII, uma importação do castelhano. Por outro lado, também não fazia sentido que um adjectivo isolado, sem o determinado, se transformasse em topónimo.
Excluída esta hipótese, encontramos duas interpretações que, como veremos, não aceitamos para as ocorrências que seleccionámos. Joseph Piel, em Os nomes germânicos na toponímia portuguesa (vol. 1, 1937: 27-28), identifica "Alvar" com o antropónimo Alvarus; mais tarde, nos seus Estudos de linguística histórica galego-portuguesa (1989: 86-87), referindo-se ao topónimo "Prado Alvar", que, como vimos, também aparece na Galiza, sob a forma aglutinada Pradoalbar, este autor continua a manter a mesma opinião. Almeida Fernandes, na sua obra Toponímia Portuguesa, rejeita a leitura de Piel, reclamando "alvar" e todos os seus derivados para um pretenso apelativo do carvalho português, também conhecido por "alvarinho", "carvalho-alvarinho", "carvalho-comum" e "roble".
No primeiro caso não vemos como a oxítona "alvar" poderá derivar ou representar a proparoxítona Álvaro; no segundo não descortinamos qualquer relação entre um "prado" e o "carvalho".
"Alvar" poderia ainda ser um derivado de "arval", do latim arvu- "campo, terra lavrada, seara", mas tal hipótese não faria qualquer sentido na associação com "prado", do latim pratu- "prado, terreno, campo".
Pesando todas estas hipóteses, inclinamo-nos para uma tautologia, que poderá recuar ao adstrato típico do convívio entre duas línguas diferentes, tautologia tanto mais facilitada, quanto verificamos, como veremos de seguida, aproximações semânticas entre a voz celta e a latina, pois destas línguas se trata.
Pensamos que este "alvar" corresponderá a uma voz celta, detectável no escocês e no irlandês arbhar, "cereais, plantas gramíneas", e no velho-irlandês arbe, com o mesmo significado.
No que se refere a "Alvariça", discordamos mais uma vez de Joseph Piel, autor que, embora declarando a surpresa pela presença do sufixo -iça, interpreta o topónimo com o sentido de uma "casa, etc. que pertence ou que pertenceu a um chamado Álvaro", quando é certo que o sufixo -iça nunca se aplica a nomes pessoais. Pela nossa parte, interpretamos os topónimos "Alvariça", todos junto a cursos de água, como o "sítio dos pastos", com o sufixo -iça a designar lugar, como em "cavalariça" ou como no topónimo português "Vacariça" (nome de uma freguesia do concelho da Mealhada, de um lugar na freguesia de Refóios do Lima e de outro lugar na freguesia de Lanhelas).

quinta-feira, 7 de dezembro de 2006

Aveiro

Desde o século XVI que o topónimo Aveiro tem merecido as mais desencontradas opiniões, misturando aspectos lendários e leituras pseudo-etimológicas. O nome de lugar aparece pela primeira vez num documento de 959, numa doação feita pela condessa Mumadona Dias ao mosteiro de Guimarães, de propriedades que tinha em Aveiro (Arquivo da Universidade de Coimbra, doc. 1 da Colecção da Colegiada de Guimarães; apógrafo do séc. XII):
terras in Alavario et Salinas que ibidem comparavimus in communiationes de prado alvar per suis terminis cum suos homines secundum in carta resonat. [terras em Alavario e salinas que ali comprámos, confrontando com Prado Alvar, pelos seus limites e com os seus homens, como consta da escritura.]
No documento em apreço, Alavario está como locativo, com o caso oblíquo precedido da preposição in, sem o acompanhamento do elemento genérico villa, ao contrário do que se verifica na quase totalidade dos topónimos mencionados neste diploma. Face ao que expomos, pensamos que o locativo Alavario se referia, em meados do século X, a uma região de casais dispersos e cabanas de marnoteiros, possivelmente um antigo fundus, sem o carácter de exploração rural centralizada que a documentação do século seguinte já lhe dá (um diploma de 1047 fala-nos já de villa Alaveiro), pelo que o aglomerado urbano só deverá começar a estruturar-se após as campanhas de Almançor, ou talvez depois da conquista definitiva de Montemor-o-Velho por Gonçalo Trastemires, em 1034, cuja jurisdição se estendia ao vale do Vouga.
No entanto não excluímos a possibilidade da "vila" ser muito anterior e ter sido entretanto destruída, o que poderia acontecer com as incursões normandas do século IX, documentadas desde 844, mantendo-se o topónimo para o respectivo território. Mas uma coisa são hipóteses mais ou menos verosímeis, e outra a pretensão de retirar dum documento algo que lá não está.
Os diplomas publicados por A. G. da Rocha Madaíl na Colectânea de Documentos Históricos, editada em 1959 pela Câmara Municipal de Aveiro, permitem-nos detectar a evolução do topónimo -- Alavario (959) > Alaveiro (1047) > Aaveiro (1131) > Aveiro (1216) --, mostrando a existência do -l- intervocálico e também a sua queda, comprovada na forma com hiato.
Quanto a nós, o Alavario de 959 é já a forma tabelionar latinizada de Alaveiro, dos documentos do século XI (1047, 1050 e 1077), porventura já presente no linguajar dos seus íncolas.
A origem do topónimo é certamente pré-romana, de matriz antroponímica, considerando os nomes pessoais pré-latinos Alabi (recolhido em Villamesías, Trujillo, província de Cáceres) ou Aleba (encontrado em Alcântara, Lisboa), possivelmente relacionados com o topónimo ibérico Alava, que aparece já com a forma Alaba no século II, quando Ptolomeu o inclui no rol das civitates dos Celtiberi (Geog., L. 2, cap. 5). Neste caso, o topónimo Alabi + -ario (>-eiro) > *Alabario > Alavario, poderia recuar pelo menos ao século II, quando já estava totalmente vulgarizado o uso do sufixo possessivo na formação dos nomes de possessores de fundi ou villae. Embora o sufixo mais usado fosse -anus, apareciam também, com o mesmo sentido, os sufixos -acus (Gália e outras zonas célticas), -obre (Galiza) e -eiro (Lusitânia). A marca do masculino, presente em Alavario, afastaria a hipótese de uma villa [Alavaria], mas estaria de acordo com um fundus Alavari(us>o), apelativo que designava uma propriedade rústica, com todos os seus pertences.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2006

Portugal: de "cale", passando por "portucale"

Ver postagem no dia 30 de Maio de 2008 "De Portucale a Portugal"