terça-feira, 14 de julho de 2009

O topónimo AVEIRO



Adenda à postagem «Aveiro», aqui publicada em 7 de Dezembro de 2006, e contribuição deste blogue para as comemorações dos 250 anos da elevação de Aveiro a cidade.

Abrimos hoje outra possibilidade para a explicação do topónimo AVEIRO, que nos parece mais credível do que a apontada na postagem de 7 de Dezembro de 2006.

Na hipótese que passamos a desenvolver, o topónimo Aveiro terá por origem um apelativo recebido directamente do latim tardio, a que a presença árabe ou a convivência moçárabe terão acrescentado o artigo al, como aconteceu, por exemplo, no topónimo Almoster “o mosteiro”, em que o artigo al se antepôs a um apelativo romance, o que não é caso único. Mas, talvez melhor e mais simples, em vez do artigo árabe al, teremos a próstese de um a- inicial, como tão frequentemente acontece na formação do português. Referimo-nos ao apelativo do latim tardio lavarium, um dos compartimentos da domus, relacionado com as abluções e com os Lares e Penates (divindades domésticas), que se transformou no templo privado do culto doméstico das villae.

Está hoje provado que a maioria dos templos romanos tiveram um status de edifício religioso privado, especialmente os rurais, entre os quais se incluem os que existiam nas villae. Com efeito, muitas destas villae tinham o seu próprio templo, onde se praticava um culto privado e doméstico: referimo-nos, como atrás dissemos, ao lavarium, por vezes também conhecido por sacrarium (Orr, 1978; Baker, 1994) (1).

Depois do encerramento dos templos rurais, após a adopção do cristianismo como religião oficial do Estado, os santuários privados das villae, que continuaram em funcionamento até bem entrado o século V, converteram-se no último reduto do paganismo, que os éditos imperiais atingiam sobretudo a esfera pública, tendo uma pequena repercussão na esfera privada.

O isolamento da zona de Aveiro está bem patente no mapa das paróquias suevas do século VI, cujas sedes estão totalmente ausentes deste litoral, certamente ainda não cristianizado. A única paróquia registada nas proximidades situa-se além-Vouga e corresponde a Antuã, havendo algumas incertezas quanto à localização de Insula que, para Almeida Fernandes, se situaria no actual concelho de Oliveira de Azeméis, na freguesia de Cucujães (2). A Sul do Vouga, na área do actual concelho de Aveiro, não há registo de qualquer sede paroquial, fosse ela católica ou ariana.

Estas constatações permitem-nos deduzir da inexistência local, ou nas proximidades, de quadros eclesiásticos, capazes de dar assistência religiosa aos respectivos habitantes que, por isso mesmo, em período tão tardioúltimo quartel do século VI –, ainda não teriam sido cristianizados. Mas esta realidade não será de estranhar, se considerarmos que a maioria dos Suevos, quando entraram na Península, ainda eram pagãos, e que a evangelização do reino apenas se inicia poucos anos antes da elaboração do “Paroquial Suevo”, cerca de 550, com a chegada à Galécia de S. Martinho de Dume.

O quadro pouco melhora quando recuamos aos últimos anos do Império, que, no Norte de Portugal, apenas vislumbramos a diocese de Braga e, na Lusitânia, para além da metrópole de Mérida, conhecem-se tão as dioceses de Ossonoba, Évora e Lisboa, situação agravada pela inexistência na Hispânia de «corepíscopos ou bispos rurais, como existiram no Oriente».

De acordo com o “Paroquial Suevo”, a região de Aveiro integrava-se na diocese de Conimbria, com sede na actual freguesia de Condeixa-a-Velha, cuja jurisdição descia um pouco a Sul de Tomar, enquanto a Norte subia até ao Douro, que acompanhava para Leste até encontrar o rio Arda. No aro desta diocese, entre Vouga e Mondego, apenas havia as paróquias de Emínio (Coimbra) e Lorvão, muito longe de Aveiro. O “Provincial Visigótico”, da segunda metade do século VII, enuncia as diferentes dioceses e fornece-nos os respectivos limites. Em relação ao “Paroquial Suevo”, e para a zona atlântica que nos interessa, verifica-se a inclusão na diocese de Portucale do território entre Douro e Vouga, que antes pertencia à diocese de Conimbria. Quanto aos limites, ali se afirma que «Portucale teneat de Avia usque Loram, de Almos usque Solam», e que «Conimbria teneat de Naba usque Borga, de Torrente usque Lora». A transcrição justifica-se pelo limite comum às duas dioceses, que é a mais antiga referência a “Loure”, do concelho de Albergaria-a-Velha, na margem direita do Vouga e nas proximidades de Aveiro.

É este o quadro religioso na área do Baixo Vouga e na zona em que se inscreve Aveiro. Não haverá cristianismo, que apenas começará a entrar, e muito lentamente, a partir do século V. Por outro lado, a evangelização privilegiava, como não podia deixar de ser, face aos recursos reduzidos de que dispunha, os centros urbanos, começando por ganhar as respectivas elites. depois, e através destas, chegará a vez das camadas populares, dos servos e escravos. Não haverá cristianismo, mas, por certo, há religião, há paganismo, há o sincretismo religioso que ao longo de séculos amalgamou o animismo com as mais variadas crenças e divindades.

Nesta perspectiva, o nosso Lavarium corresponderia ao santuário local, que respondia às necessidades religiosas de camponeses, pescadores e salineiros das terras em volta, arreigados ao paganismo e às suas crenças. Sabemos quais eram essas crenças: basta uma leitura das actas dos concílios que começam a multiplicar-se no século VII. Para se aquilatar do desenvolvimento do cristianismo na área do actual território de Portugal, bastará dizer que o primeiro concílio aqui realizado teve lugar em Braga, no ano 561, estando presentes oito bispos de todo o reino suevo (do Cantábrico ao Tejo).


Quanto ao resto, perguntas sem respostas. Qual teria sido o destino deste lavarium, de a- prostético a tiracolo, perpetuado que foi no topónimo Aveiro? Será que lhe pertencia a estranha e arcaica estátua depositada no Museu de Aveiro, o gigante de quase 3 metros de altura, envergando umas típicas bragas célticas (em Aveiro chamamos-lhe “manaias”) e segurando pela cabeça, com a mão esquerda, uma serpente com cerca de dois metros e meio, enquanto o braço direito se levanta e a mão se abre para agarrar qualquer insígnia volante que se perdeu? Onde se levantaria este santuário de cultos desconhecidos? Porventura naquela colina, entre ribeiras e debruçada sobre a água, onde nasceu o centro histórico da nossa cidade. Quem sabe se no mesmo sítio em que se levantou a velha matriz de S. Miguel, demolida em 1835, possivelmente para que não se pronunciasse no seu orago o nome do rei maldito e assassino. S. Miguel, o orago que surge nos primevos tempos do cristianismo da Hispânia ocidental, quase sempre a desalojar o deus solar pagão, escondendo-lhe o nome e roubando-lhe a casa, como aconteceu mais para Sul, nas proximidades do Alandroal, com o S. Miguel a destronar o poderosíssimo Endovélico. Igreja de S. Miguel. Igreja de estranha arquitectura, de torre gótica e altaneira a encostar-se à capela-mor, certamente o pequeno corpo do templo primitivo que, face ao diminuto número de fregueses, não precisaria de outros cómodos. Cresceu a vila, cresceu o templo. Talvez a arqueologia tenha mais sorte, se alguma vez se proporcionar escavar a praça aveirense que mais história viu passar.


(1) LÓPEZ QUIROGA, Jorge; MARTÍNEZ TEJERA, Artemio M. – El destino de los templos paganos en Hispania durante la antigüedad tardía. In Archivo Español de Arqveología. Madrid. Vol. 79 (2006), p. 125-153. ISSN 0066-6742. ORR, David G. – Roman domestic religion: the evidence of the household shrines. In Aufstieg und Niedergang der romischen Welt. Vol.16/2 (1978) p. 1557-1591. BAKER, Jan Theo -- Living and Working with the Gods.Studies of Evidence of Private Religion and its Material Environment in the City of Ostia (100-500 A.D.). Amsterdam: J.C. Gieben, 1994. ARCE, Javier – Bárbaros y romanos en Hispania: 400-507 A.D.. Madrid: Marcial Pons, 2007. 326 p. ISBN 9788496467576. ARCE, Javier – Fana, templa, delubra destrui praecipimus: El final de los templos de la Hispania romana. In Archivo Español de Arqveología. Madrid. Vol. 79 (2006), p. 115-124. ISSN 0066-6742.


(2) Almeida Fernandes considera absurda a hipótese de Pierre David que concentra num único topónimo – Insula Antunane – estas duas paróquias suevas, com uma justificação, na verdade, muito difícil de aceitar, face às evidências dos argumentos daquele investigador. No concelho de Oliveira de Azeméis existem hoje três lugares denominados “Ínsua”, nas freguesias de Carregosa, Cucujães e S. Martinho da Gândara.